Artigo publicado na Revista do Advogado, v. 98, p. 212-221, 2008.


Artigo publicado na Revista do Advogado, v. 98, p. 212-221, 2008.
REVISÃO CONTRATUAL SEM IMPREVISÃO

Rogério Donnini


Advogado. Professor Doutor de Direito Civil da PUC-SP, nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado. Professor e pesquisador da Facoltà di Giurisprudenza della Seconda Università degli Studi di Napoli, Itália. Presidente da Academia Paulista de Direito, titular da cadeira nº 73.


                  


 


“Com isto, é dado ao juiz uma tripla tarefa. Ele deve decidir sobre cada prerrogativa que é legitimada diante dele; ele não pode – como era possível aos jurados romanos do tempo clássico – recusar de dar uma sentença por não encontrar uma norma legal. O juiz está, por outro lado, submetido à lei; ele deve, portanto, decidir as petições a ele apresentadas conforme a lei. Por fim, seu juramento o obriga a dar uma sentença, não somente em virtude da lei, mas também de forma justa e equânime. Sua atividade está sob a divisa que se cunhou no edifício da Supreme Court dos Estados Unidos: Equal justice under law.” (Helmut Coing)[1]


 


 


1. As transformações nas relações contratuais             


            O contrato vem se modificando há muito tempo, alterações essas que se intensificaram após a Primeira Grande Guerra, mas que tiveram início com a Revolução Industrial. A alteração primacial na concepção clássica do contrato foi a intervenção estatal nessa relação, com o objetivo de estabelecer ou restabelecer o equilíbrio que deveria existir no momento da contratação[2].


            A intervenção do Estado nas relações privadas foi duramente criticada no século passado, denominada publicização do Direito Privado. Como o Estado passava a exercer efetivamente um papel de controle, de ingerência naquilo que as partes contratavam, propagou-se que esse fato enfraquecia, cada vez mais, o caráter privado do Direito contratual. Com essa propalada debilidade do Direito Privado, chegou-se a asseverar que tudo seria público, em especial as relações contratuais.[3] Esse fenômeno, que se iniciou bem antes, é conhecido como dirigismo contratual,[4] que visava a limitação da liberdade contratual, para que fossem evitados abusos perpetrados pela parte mais forte da relação contratual, mitigando a autonomia privada.


            Na realidade, verificou-se que a liberdade contratual, vale dizer, a livre inserção de cláusulas contratuais pelos contraentes, que decorre do princípio da autonomia privada, e a pretensa igualdade formal[5] entre as partes contratantes não eram suficientes para se atingir a justiça contratual. Era esse o modelo liberal de contrato, consectário daquele preconizado no Code Napoléon,[6] o “Código da Burguesia”, inspirado no liberalismo do século XIX e na preocupação com a segurança das relações contratuais. Essa visão de contrato, distante daquela desenvolvida na Alemanha, desde o advento do Bürgerliches Gezetsbuch[7], de 1896, considerado o “Código da Ética”[8], imperou entre nós, com o Código Civil de 1916. Nesse contexto, em que se dava a oferta e a aceitação, o livre consentimento e a igualdade formal das partes, os principais fundamentos eram a liberdade de contratar (autonomia privada), a obrigatoriedade da convenção e os efeitos desta vinculando apenas os contratantes (princípio da relatividade dos efeitos dos contratos), além do princípio da boa-fé, pouco aplicado e raramente utilizado nas relações contratuais.


            Esse modelo de contrato centrado em bases individuais, segundo uma igualdade formal, que fazia lei entre as partes, e sua força reconhecida no brocardo pacta sunt servanda, imperou entre nós até o final do século passado[9]. Com fundamento no princípio da força obrigatória dos pactos, também denominado intangibilidade contratual, se os contratantes eram livres para firmar um contrato e o faziam, assumiam todas as obrigações celebradas, segundo a vontade manifestada, independentemente do aspecto ético daquela relação, ou mesmo de um ideal de justiça.


            Como essa concepção de contrato não mais atendia às aspirações e necessidades da nossa sociedade, visto que não se concebia o que sucedia com freqüência, isto é, a confirmação de contratos firmados sem equilíbrio, realizada de maneira iníqua, firmada com ausência de boa-fé, sob o argumento de que havia a autonomia privada e as partes eram livres para contratar, a relação contratual foi sendo alterada, sempre com a intervenção do Estado. Em verdade, o perfil do contrato alterou-se e foi abandonado o rigor de sua intangibilidade, de sua força obrigatória, para adaptá-lo a uma nova realidade social, que buscava, antes de tudo, uma relação equânime, justa.


 


2. Contratos de massa e as relações de consumo


 


            O contrato transformou-se de maneira lenta, ao longo de décadas, e talvez o marco dessas mudanças tenha sido o advento dos chamados contratos de massa, que eram tratados como se fossem pactos centrados em bases individuais, segundo uma igualdade formal. No Brasil, a real transformação dos contratos ocorreu com o advento da Constituição Federal e, em seguida, com o nosso moderno Código de Defesa do Consumidor, que alterou os princípios da autonomia da vontade, da força obrigatória dos pactos e da relatividade dos efeitos dos contratos, criando uma verdadeira revolução doutrinária, provocando a alteração de verdadeiros dogmas do Direito Civil, além de criar novos símbolos e uma nova linguagem, numa visão moderna do Direito Contratual.[10]


O Código de Defesa do Consumidor limitou a liberdade contratual, evitando os abusos que eram cometidos pela parte mais forte na relação contratual, tratando, ainda, as partes com evidente desigualdade[11], atingindo uma isonomia real. O princípio da força obrigatória dos contratos também sofreu transformações, diante de sua relativização, além de se tornarem expressos os princípios da boa-fé objetiva e da eqüidade[12], o que possibilitou a revisão do contrato de consumo celebrado sem a observância desses princípios, que contivessem cláusulas fixando prestações desproporcionais ou excessivamente onerosas, independentemente da existência de fato imprevisível ou extraordinário.


 


3. Cláusulas gerais como fundamento da revisão contratual


 


            O atual Código Civil está pautado em três aspectos: eticidade, socialidade e operabilidade[13].  O primeiro está presente em vários dispositivos do código, como, v.g., os arts. 113, 187 e 422); o segundo é reconhecido na função social do contrato (art. 421) e da propriedade (art. 1.228, § 1º); e o terceiro aspecto (operabilidade) é constatado com a inserção das denominadas cláusulas gerais (arts. 113, 187, 421, 422, 884, 1.277, 1.228, § 1º, entre outros) e nos conceitos legais indeterminados (arts. 188, II, 251, parágrafo único, 581, entre outros). As cláusulas gerais facilitam e modernizam a atividade jurisdicional, pois permitem ao juiz a criação de direitos e obrigações, na solução para uma situação, valorando os fatos, concretizando, assim, o que era abstrato (boa-fé objetiva, função social etc.).


            Os conceitos legais indeterminados são palavras ou mesmo expressões contidas nos dispositivos legais dotadas de vagueza e abstração, ligadas a uma hipótese de fato como, por exemplo, a especificação de urgência (art. 251, parágrafo segundo), ou perigo (art. 188, II). As cláusulas gerais possibilitam, nesse sistema móvel,[14] constante aperfeiçoamento e transformação na aplicação do direito, contrariamente ao que havia em nosso Código anterior, formado no padrão oitocentista, fechado e rígido[15]. Houve, bem de ver, evidente evolução do Direito Contratual e há atualmente a efetiva possibilidade de se tornar compatível a nova linguagem de nossa atual lei civil substantiva e a legislação de consumo.


            Os três pontos em que o código está centrado (eticidade, socialidade e operabilidade) permitem, por meio de algumas cláusulas gerais, o restabelecimento da base do negócio em caso de desequilíbrio, independentemente da demonstração de imprevisibilidade, conforme será aqui analisado. Antes de tratarmos da revisão contratual, é fundamental o exame dos princípios que norteiam a atual teoria contratual.


 


4. Princípios da Teoria Contratual


 


            A teoria clássica contratual enumera os princípios do Direito Contratual: autonomia privada; consensualismo; relatividade dos efeitos dos contratos; força obrigatória dos pactos; e boa-fé[16]. Atualmente, soma-se a esse rol o princípio da função social do contrato, que abarca o princípio da conservação dos contratos e o da possibilidade de revisão contratual. Podem ser enumerados outros princípios, que aqui não trataremos, principalmente aqueles apontados nas relações de consumo, tais como o da trasparência, confiança, eqüidade, entre outros[17].


            O primeiro princípio (autonomia privada) continua a existir, embora limitado pela supremacia da ordem pública e vinculado à concepção social do contrato. E não poderia ser o contrário, visto que qualquer avença resulta desse princípio, que dá azo à liberdade contratual. Esse princípio fundamental consiste na auto-regulamentação dos interesses privados, que se opera pela declaração de vontade no negócio jurídico[18]. A autonomia privada coincide com a noção de negócio jurídico, que é considerado um fato jurídico em que há uma ou mais declarações de vontade. Interessa-nos aqui a análise do negócio jurídico bilateral, o contrato.


            O segundo princípio (consensualismo) é aquele pelo qual o acordo de vontades manifestado pelos contratantes é suficiente à perfeição do contrato, salvo as hipóteses em que se exige uma forma determinada.[19] Esse princípio também continua a existir, observadas as limitações impostas pela lei, em especial pelo princípio da função social do contrato (art. 421 do Código Civil).


            O princípio da relatividade dos efeitos dos contratos consiste na produção de efeitos da convenção apenas para os contratantes, não atingindo terceiros. Comporta, no entanto, exceções, tais como nas relações de consumo, na hipótese de herdeiros universais de um contratante, nos termos do art. 1.792 do Código Civil, ou ainda na hipótese de uma relação contratual ferir o meio ambiente.


            O princípio da força obrigatória dos pactos, embora inexistisse um dispositivo expresso no Código Civil de 1916, nos moldes do Code Napoléon (art. 1134) e Codice Civile italiano, de 1942 (art. 1372: “Il contrato ha forza di legge tra le parti. Non può essere sciolto che per mutuo consenso o per cause ammesse dalla legge”), decorria e continua a resultar da própria essência de um contrato, pois não teria qualquer sentido contratar sem que houvesse um efeito obrigatório[20]. Destarte, se os contratantes são livres para celebrar um contrato e o fazem, assumem todas as obrigações acordadas, segundo a vontade manifestada, devendo ser cumprido aquilo que foi acertado. Contudo, esse princípio foi elevado a um patamar tal (intangibilidade contratual) em nosso País, que mesmo relações iníquas, desiguais, injustas, foram convalidadas, sob o argumento de que os pactos deveriam ser cumpridos (pacta sunt servanda).


            A idéia de contrato, antes da Constituição Federal de 1988 e, em especial, do Código de Defesa do Consumidor, tinha como pontos principais, enaltecidos pela doutrina e jurisprudência dominantes, apenas os princípios da autonomia da vontade e o da força obrigatória dos pactos, o que proporcionou o esquecimento do princípio da boa-fé. As decisões de nossos tribunais seguiram nessa direção ao valorizar, de forma até mesmo desmedida, esses dois princípios, olvidando-se da própria noção de contrato, fundamentada na idéia de comutatividade, que é ínsita a qualquer contrato e consiste no equilíbrio nas prestações assumidas pelas partes. O contrato era celebrado em bases individuais e por mais que se propagasse seu papel importante na circulação de riquezas e fortalecimento da economia, gerou uma idéia distorcida de contratação, sem que houvesse entre os contraentes boa-fé e a idéia de comutatividade.


            O princípio da força obrigatória dos contratos sofreu a maior transformação com o surgimento do CDC, tendo em vista que foi relativizado, além de se tornarem expressos os princípios da boa-fé e da eqüidade[21], o que possibilitou a revisão do contrato de consumo firmado sem a observância desses princípios fundamentais. Mais recentemente, essa relativização estendeu-se ao atual Código Civil, em razão dos arts. 113 (boa-fé subjetiva), 421 (função social do contrato) e 422 (boa-fé objetiva).


            O princípio da boa-fé foi, antes do texto constitucional de 1988[22], praticamente esquecido nas relações contratuais, sob a alegação de que inexistia norma expressa nesse sentido. Não teria senso algum no Direito Privado a observância desse princípio nas relações comerciais (art. 131 do Código Comercial, revogado pelo atual Código Civil)[23], e sua inaplicabilidade nas relações de Direito Civil, reguladas pelo Código Civil de 1916. Em verdade, o princípio da boa-fé objetiva poderia ter sido utilizado com muito mais constância nas relações contratuais, por ser um princípio geral do direito. Essa questão, no entanto, já está superada, pois o CDC (art. 4º, III, e 51, § 1º) e o atual Código Civil (arts. 113 e 422), por intermédio dessas cláusulas gerais impõem um comportamento correto, ético, equilibrado e honesto nas relações contratuais ou em qualquer outra relação jurídica.


            O princípio da função social do contrato é um limitador dos princípios da autonomia privada e da força obrigatória dos contratos e está fundado na idéia de comutatividade e na boa-fé objetiva. Como já afirmado, o princípio da autonomia da vontade, ou mais precisamente autonomia privada, não permitia, mesmo sob a égide do Código Civil de 1916, que se contratasse contrariamente aos ideais de justiça. Essa era e continua a ser a função social do contrato, hoje enaltecida e prevista expressamente no novo Código Civil, mas que sempre deveria ter existido nas relações contratuais, por estar diretamente vinculada à noção de comutatividade ou justiça comutativa.[24]


            Com efeito, a função social do contrato sempre fez parte da teoria contratual. Não era utilizada porque se acreditava que ela seria obtida pela simples atuação dos contraentes, o que não aconteceu satisfatoriamente, além de existir evidente preocupação com a circulação de riquezas e com o efetivo cumprimento da obrigação, mesmo que não houvesse um comportamento ético, proporcional, razoável entre os contraentes.


            Embora somente após a entrada em vigor da atual lei civil substantiva tenha se intensificado o estudo da concepção social do contrato, verifica-se que o contrato de consumo, regulado pelo Código de Defesa do Consumidor, inegavelmente, tem uma função social clara, pois possui finalidades que vão ao encontro da aspiração da coletividade, numa relação que busca, antes de tudo, o equilíbrio, a boa-fé objetiva, a transparência e a efetiva realização da justiça contratual. Estatui o art. 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Independentemente da crítica que se pode fazer do aspecto semântico de “liberdade de contratar”[25] e “liberdade contratual”, pois a redação é considerada imprópria, uma vez que a liberdade de contratar seria decorrência da própria liberdade de celebrar um pacto, o que seria óbvio numa sociedade capitalista, sendo mais adequada e precisa a expressão “liberdade contratual”, que resulta da possibilidade de criação de cláusulas contratuais pelos contratantes, observado o princípio da supremacia da ordem pública.


                        A função social do contrato é consectário da concepção social da propriedade, que existe desde a Constituição Federal de 1946 no Brasil, reiterado pelos textos constitucionais subseqüentes, assim como presente no Estatuto da Cidade e no novo Código Civil (art. 1.228, § 1º). Trata-se de conseqüência da noção social de propriedade[26], em razão da maneira como se opera a transferência do domínio, ou seja, pelo contrato. Não há sentido algum em exigir um comportamento social do proprietário, como preconizava Duguit, no século passado, e diverso para o contratante.[27]


            O Comportamento social que se exige das partes na seara dos contratos nada mais é do que uma extensão do princípio da solidariedade, expresso atualmente no art. 3º, n. I, da Constituição Federal. De solidário (do latim solidariu) advém a palavra solidariedade, que significa obrigação recíproca entre as pessoas, que se obrigam uma pelas outras e cada uma delas por todas as outras pessoas. Note-se que é um aspecto ético que liga um indivíduo às responsabilidades e interesses sociais, um verdadeiro comportamento centrado na ética, com a finalidade de beneficiar as demais pessoas numa dada sociedade. Ressalte-se que os princípios da solidariedade e da igualdade, por sua vez, são decorrência do princípio superior da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, n. III). Por meio daqueles (solidariedade e igualdade), se dá a efetiva proteção da dignidade humana. São, em verdade, instrumentos para a realização do princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio da igualdade deve ser entendido como uma meta, uma direção na busca da justiça social.[28]


            Portanto, não mais se admite um contrato sem que prevaleça sua concepção social (CC, 421), ao abrigo da idéia de comutatividade e boa-fé objetiva (CC, 422, e CDC, 51, § 1º), que são decorrência do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Em sendo assim, a função social do contrato serve de fundamento para que se efetive entre os contratantes um equilíbrio, uma relação equânime, sob pena de ser revista a avença.


            A função social do contrato permite, ainda, a aplicação do princípio da conservação dos contratos nas relações entre particulares, reguladas pelo Código Civil, possibilitando a manutenção do contrato, com o restabelecimento do equilíbrio, a menos que a única intenção de um dos contratantes seja a resolução. Mesmo nessa hipótese, ainda assim o sistema admite a conservação do pacto, desde que o réu na ação de resolução modifique eqüitativamente as condições do contrato (CC, 479). O CDC prevê nos arts. 6º, V, e 51, § 2º, o princípio da conservação dos pactos.

 


5. O que é imprevisível e extraordinário?


            A possibilidade de revisão dos contratos no Brasil é relativamente recente. Pautado na segurança e circulação de riquezas, por intermédio do contrato, e amparado nas codificações do século XIX, nosso Código Civil de 1916 foi fiel ao brocardo “Contractus enim legem ex conventione accipiunt[29], embora essa máxima tivesse origem nos princípios[30] da teoria clássica contratual, e não num dispositivo específico[31]. Somente em meados do século passado[32] é que surgiram as primeiras decisões permitindo uma relativização do princípio da força obrigatória dos pactos. A primeira decisão reconhecendo a teoria da imprevisão foi proferida no Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 91.715), em 25 de maio de 1950, emanada da Justiça do Trabalho. Após essa decisão é que a jurisprudência, de forma tímida, passou a permitir a revisão dos contratos.


            A teoria da imprevisão tem origem na cláusula rebus sic stantibus, que é abreviação da fórmula contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur (Nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório entende-se subordinado à continuação daquele estado de fato vigente ao tempo da estipulação),[33] glosa medieval atribuída a Neratio.


            Atualmente, nosso Código Civil consagra a teoria da imprevisão nos arts. 317 e 478. Segue o nosso Código os passos do Codice Civile italiano (art. 1467):


 

“Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione di una delle parti è divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, con gli effetti stabiliti dall’art. 1458. La risoluzione non può essere domandata se la sopravvenuta onerosità rientra nell’alea normale del contrato. La parte contro la quale è domandata la risoluzione può evitarla offrendo di modificare equamente le condizioni del contratto”.[34]

 


            Esse dispositivo do Código Civil italiano foi, em 1942, importante para que se possibilitasse a revisão de um contrato, em razão de fatos supervenientes à celebração do pacto, considerados imprevisíveis e extraordinários. O Código italiano entrou em vigor em plena segunda Grande Guerra, o que demonstrava a intenção do legislador de permitir a flexibilização da força obrigatória dos contratos em situações excepcionais, como uma profunda alteração da economia. Poder-se-ia justificar essa teoria diante dos problemas econômicos suportados pelos europeus imediatamente após a primeira Guerra Mundial.


            No Brasil, conforme já dissemos, a teoria da imprevisão foi desenvolvida pela doutrina e jurisprudência após a segunda metade do século passado até que se permitiu, de forma expressa em nosso ordenamento, a revisão contratual, pela primeira vez, no Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, n. V) e mais recentemente no Código Civil.


            É importante ressaltar que o CDC não acolheu a aplicação clássica da teoria da imprevisão[35]. Regula a revisão contratual de maneira moderna. O dispositivo em questão (art. 6º, n. V) possibilita a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em virtude de acontecimentos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Na primeira hipótese, o juiz pode alterar uma ou mais cláusulas que estabeleçam uma prestação desproporcional, vale dizer, aquela que provoca um desequilíbrio contratual, seja no preço ou qualquer outra obrigação desproporcional. Na segunda hipótese, há a possibilidade de revisão judicial da cláusula de preço, que era eqüitativa na época da celebração do contrato e se tornou excessivamente onerosa para o consumidor. Não existe qualquer menção a fatos imprevisíveis e extraordinários. Basta que haja desproporção, desequilíbrio, ou excessiva onerosidade.


            O atual Código Civil resgatou a antiga cláusula rebus sic stantibus e deu um tratamento desatualizado ao tema. Falar-se em imprevisão em nosso País para que um contrato seja revisto é temerário, pois o que seria atualmente imprevisível e extraordinário? A volta da inflação? A alteração de uma alíquota de importação? A desvalorização ou mesmo a valorização cambial? A rigor, nada disso é imprevisível. Assim, numa interpretação literal e, portanto, inadequada da norma (arts. 317 e 478), sem que se leve em conta uma visão do sistema, poderia levar o intérprete a concluir que nas relações entre particulares (reguladas pelo Código Civil), para que uma avença fosse alterada seria necessário um fato extraordinário da grandeza de uma guerra ou o colapso da economia. Todavia, para a modificação de um contrato, basta que a base do negócio jurídico tenha se alterado. É o que se denomina base objetiva, que é violada quando a relação de equivalência entre prestação e contra-prestação inexiste.[36] Essa base do negócio está condicionada ao estrito cumprimento, entre nós, do art. 422 do Código Civil (boa-fé objetiva), equivalente ao § 242 do BGB[37], além da função social do contrato (CC, 421).


            Dessa forma, nos contratos de consumo, para que o consumidor pleiteie a revisão do pacto, basta a demonstração das hipóteses do art. 6º, n. V, do CDC. Nada obsta, também, que o fornecedor de produtos ou serviços pugne pela eventual revisão da avença. Nesse caso, o fundamento legal está no § 2º do art. 51 do CDC, assim como na regra geral do Código Civil, que serve de base para qualquer pedido de revisão, ou seja, a função social do contrato. Se se tratar de relação entre particulares, regulada pelo Código Civil, o fundamento para o pedido de revisão do contrato deverá estar pautado na função social do contrato (CC, art. 421) ou, na hipótese de imprevisão, nos dispositivos específicos que tratam desse tema (CC, 317 e 478/480).


                       

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[1] Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, tradução de Elisete Antoniuk, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 350.

[2] V. sobre a transformação do contrato GILMORE, Grant. The death of contract - La Morte del Contrato, traduzione di Andrea Fusaro, Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1988.

[3] Georges Ripert in Le déclin du Droit (étude sur la législation contemporaine), Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1949, p. 37 e s.

[4] Há vários exemplos de dirigismo contratual no nosso ordenamento jurídico. Ele está presente nas relações de consumo, reguladas pela Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor). Mais recentemente, em vários dispositivos do atual Código Civil, tais como os arts. 421 (função social do contrato) e 2.035. No contrato de trabalho há várias disposições na CLT que limitam a autonomia privada. Um outro exemplo é o da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato), que estabelece no art. 37, parágrafo único, limitação às modalidades de garantia da locação, entre outras restrições existentes nessa lei.

[5] A igualdade entre as partes deve ser substancial ou real e está baseada no tratamento desigual para desiguais.

[6] Código Civil francês de 1804.

[7] Código Civil alemão (BGB), que entrou em vigor em 1900.

[8] O § 157 do BGB estatui que “os contratos devem ser interpretados como exigem a boa-fé e a intenção das partes determinada segundo os usos”. No mesmo sentido o § 242 do BGB reza que “o devedor é obrigado a efetuar sua prestação como exigem a boa-fé e a intenção das partes determinada segundo os usos.” No direito alemão, portanto, esse princípio transformou o direito obrigacional clássico, exigindo dos contratantes, na formação do pacto, honestidade, lealdade e probidade. 

[9] O marco da transformação do contrato no Brasil foi a Constituição Federal de 1988. Em razão de determinação de nosso texto constitucional (art. 170, V), foi criado o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), que alterou sobremaneira a noção clássica de contrato.

[10] Rogério Ferraz Donnini, A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, 2001, p. 132/140.

[11] Nelson Nery Junior, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, Revista dos Tribunais, 1992, p. 40.

[12] Arts. 4°, III, e 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor.

[13] Miguel Reale, O novo Código Civil, encarte da revista Problemas Brasileiros nº 353, setembro/outubro de 2002.

[14] Sistema, segundo Savigny, é a “concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as regras de direito numa grande unidade.” (Federico Savigny, Sistema del Derecho Romano actual, 2ª edição, tradução de Jacinto Mesia e Manuel Poley, Editora Góngora, Madrid, 1950, p. 228). O sistema fechado é a maneira de legislar segundo a qual as normas jurídicas teriam de definir, de forma precisa, determinados pressupostos e indicarem, também de forma exata, suas conseqüências. Nesse sistema, portanto, que seria completo, numa fictio iuris, não se admitia a existência de lacunas. Esse sistema era o modelo oitocentista de codificação, o monismo jurídico. Já o sistema móvel é aquele em que é reconhecida a sua não plenitude, ao se permitir a intromissão de elementos estranhos, além de não se recusar a incertezas de questões exteriores. É um sistema dotado de mobilidade, o que permite um progresso, um verdadeiro aperfeiçoamento pela aplicação e interpretação das cláusulas gerais. Sobre a mobilidade do sistema, v. Claus – Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, trad. A. Menezes Cordeiro, 3ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, p. 143.

[15] Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, Código Civil e legislação extravagante, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2006, p. 159.

[16] V. sobre os princípios da teoria clássica contratual Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 1ª parte, 34ª edição, revista e atualizada por Carlos Alberto Dabus Maluf, Saraiva, 2003, p. 9 e s.; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, 3º volume, Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais, 23ª edição, Saraiva, 2007, p. 22 e s.; e  Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, 11ª edição, atualizada por Regis Fichtner, Forense, 2003, p. 10 e s.

[17]  V. Claudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 714 e s.

[18] O contrato é uma espécie de negócio jurídico que se aperfeiçoa por meio da declaração de vontade de, pelo menos, duas partes. Portanto, trata-se de um ato bilateral ou plurilateral, ao contrário do outro tipo de negócio jurídico, os atos unilaterais, que se perfazem com a manifestação de vontade de uma das partes, como, por exemplo, a gestão de negócios.

[19]  Como, v.g., uma escritura pública para a compra e venda de bem imóvel.

[20] No Direito Romano nem todos os contratos tinham força obrigatória. Diferentemente do Direito moderno, contrato e pacto não eram termos sinônimos. O contrato era a conventio, dotada de força obrigatória, enquanto que do pacto não nascia qualquer ação, não possuindo força obrigatória, mas apenas moral (ex nudo pacto non nascitur actio). Posteriormente, o pacto passou a ter força, razão pela qual surgiu a expressão pacta sunt servanta (os pactos devem ser observados).

[21] Art. 4°, III, do Código de Defesa do Consumidor.

[22] Mesmo antes do CDC e do novo Código Civil, na Constituição Federal está o fundamento da boa-fé objetiva. Do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1°, inciso III) resulta a boa-fé objetiva.

[23] A primeira parte do Código Comercial (arts. 1º a 456) foi revogada pelo Código Civil.

[24] V. Rogério Ferraz Donnini, A Constituição Federal e a concepção social do contrato, in Temas atuais de Direito Civil na Constituição Federal, org. Rui Geraldo Camargo Viana e Rosa Maria de Andrade Nery, Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 69/79.

[25] V. Giselda Maria F. Novaes Hironaka, Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado, in Revista do Advogado n. 68, p. 86, dezembro de 2002, da Associação dos Advogados de São Paulo.

[26] V. Carlos Alberto Dabus Maluf, Limitações ao Direito de Propriedade, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 68 e s.

[27] Léon Duguit, em sua obra Fundamentos do Direito, tradução de Ricardo Rodrigues Gama, LZN Editora, Campinas/SP, 2003, p. 20 e s., pregava a necessidade de todos na cooperação do que denominava solidariedade social. Para esse doutrinador, há uma regra de direito que obriga ao homem desempenhar um papel social. Sustentava, de forma inovadora, que o direito do proprietário era limitado por essa missão social que ele tem de exercer.

[28] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e teoria da Constituição, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2002, p. 428.

[29]  “Os contratos são lei por convenção entre as partes”.

[30] Autonomia privada e intangibilidade contratual.

[31] Como sucede nos Códigos Civil da França (1804) e da Itália (1942).

[32] Os julgados favoráveis à aplicação da teoria da imprevisão sofreram forte influência da primeira obra a esse respeito em nosso País, do prof. Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, Imprensa Nacional, 2a. edição, 1943.

[33] Arnoldo Medeiros da Fonseca, em sua obra Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, Imprensa Nacional, 2a. edição, 1943, p. 14.

[34] Tradução: “Nos contratos de execução continuada, periódica ou de execução futura, se a prestação de uma das partes torna-se excessivamente onerosa em conseqüência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a parte que deve tal prestação pode demandar a resolução do contrato, com os efeitos estabelecidos no art. 1.458. A resolução não pode ser demandada se a onerosidade superveniente entra no risco normal do contrato. A parte contra a qual é demandada a resolução pode evitá-la oferecendo-se para modificar eqüitativamente as condições do contrato.”

[35] V. Rogério Ferraz Donnini, ob. cit., p. 195.

[36]  Karl Larenz, Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos, Madrid, 1956, p. 224 e s.

[37] "O devedor está obrigado a efetuar a sua prestação conforme a boa-fé e os costumes de trânsito". V. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, ob. cit., p. 422 e s.


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